segunda-feira, 5 de agosto de 2013

História de Palmares ganha nova cronologia com análise de fontes originais

Agência Fapesp - Terra Educação - 01/08/2013 - São Paulo, SP
Em 1678, o então rei dos Palmares firmou um acordo de paz com o governador de Pernambuco, a autoridade máxima sobre um território que englobava os atuais estados da Paraíba, Alagoas, Rio Grande do Norte, além de Pernambucano.
A negociação durou alguns meses e envolveu intérpretes, envio de embaixadas, presentes e libertação de prisioneiros. De um lado, Ganazumba (ou Gangazumba), tio de Zumbi, séculos depois apontado como símbolo da resistência contra a escravidão; de outro, dom Pedro de Almeida, governador prestes a voltar para Portugal.
Até agora pouco estudado e comentado pela historiografia, o episódio vem ganhando contornos mais definidos sob a luz de documentos originais, boa parte deles inéditos. O material, manuscrito, inclui cartas, despachos de conselheiros do regente português, crônicas e até rascunhos encontrados em Portugal pela historiadora Silvia Hunold Lara, professora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), em pesquisa realizada no âmbito do Projeto Temático `Trabalhadores no Brasil: identidades, direitos e política (séculos XVII a XX)`.
A documentação tem permitido que Lara e outros historiadores tracem uma nova cronologia sobre Palmares. `Em geral, a historiografia periodizou a história palmarina a partir das guerras feitas contra eles. Procuro me concentrar na formação dos mocambos [os assentamentos de fugitivos] e entender como eles se organizavam em termos políticos e militares`, disse Lara.
`A década de 1670 é importante porque marca o reconhecimento por parte das autoridades portuguesas e coloniais desse sobado (estado africano) em Palmares. Os termos do acordo negociado em 1678 constituem a maior evidência disso`, disse a historiadora.
Em seus estudos, Lara retoma teses de uma vertente da historiografia que dá ênfase às raízes africanas de Palmares, na qual se incluem os brasileiros Nina Rodrigues (1862-1906) e Edison Carneiro (1912-1972) e os norte-americanos Raymond Kent (1929-2008), Stuart B. Schwartz e John Thornton.
De acordo com Lara, um documento-chave para entender Palmares é uma crônica anônima, com data atribuída a 1678, escrita logo depois do acordo de paz selado entre Ganazumba e o governo de Pernambuco, quando d. Pedro de Almeida volta a Portugal e vai mostrar seus feitos às autoridades portuguesas.
`É uma crônica extensa, que faz uma história de Palmares, desde o seu início até 1678. Dá nome aos mocambos, descreve as relações entre os chefes militares e os chefes dos mocambos, conta as expedições feitas e equipara a uma conquista militar a vitória [parcial] obtida em 1677 por uma expedição que destrói os mocambos e está na origem do acordo de paz`, disse.
O grande ponto, segundo a professora titular do Departamento de História da Unicamp, é que essa crônica sempre havia sido lida pelos estudiosos a partir de uma publicação na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro de 1859 – feita quase 200 anos após ser redigida.
`As pessoas não viram o original, que estava perdido nos arquivos. Quando você olha o original, pode ver que houve transcrições incorretas`, disse Lara. Um bom exemplo é o dos nomes das lideranças palmarinas e dos principais mocambos ali descritos – com diferenças em relação aos consagrados pela historiografia.
`A maior parte de quem lidou com Palmares trabalhou com uma documentação impressa. E quem transcreveu e publicou fez uma seleção. Ao ir às fontes e aos arquivos, localizei uma quantidade muito grande de fontes ao redor desses documentos transcritos, muitas nunca publicadas`, disse.
Os achados estavam no Arquivo Histórico Ultramarino e no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, e na biblioteca pública da cidade de Évora, interior de Portugal.
Saindo da trilha dos Imbangala
Lara também parte de um trabalho publicado em 2007 por Thornton e pela historiadora Linda Heywood, da Boston University, nos Estados Unidos, sobre a história das guerras na África Central para estudar quem eram os africanos escravizados e trazidos para o Brasil que fugiram e acabaram se organizando em agrupamentos em vários pontos de uma extensa região nordestina ao norte do Rio São Francisco, caracterizada por matas de palmeiras.
`Hoje conseguimos saber com um pouco mais de precisão quem eram as pessoas trazidas para cá: muito provavelmente eram falantes de kimbundu, língua africana da região do então reino de Ndongo, que ocupava o que hoje é uma região de Angola`, disse.
Dos vários assentamentos de fugitivos – todos conhecidos nessa época como palmares –, um deles em especial se consolidou durante o período da ocupação holandesa (entre 1630 e 1654), formando uma rede de mocambos que se tornou conhecida depois como Palmares. Nove mocambos chegaram a abrigar no total cerca de 11 mil habitantes, de acordo com algumas fontes.
`Todo mundo diz quilombo dos palmares, mas a palavra `quilombo` é empregada deslocadamente nesse contexto e é anacrônica para designar Palmares. A palavra empregada naquele período para designar `assentamentos de fugitivos` é mocambo`, afirmou Lara.
Segundo a historiadora, `kilombo` é uma palavra africana que significa `acampamento de guerra`, usada pelos grupos nômades guerreiros Imbangala, da África Central. Historiadores como o norte-americano Stuart Schwartz, da Yale University, consideraram que a formação dos quilombos nas Américas estava relacionada a esses acampamentos guerreiros – daí a origem do termo.
`Mas acho que essa não é uma matriz da formação dos assentamentos dos fugitivos no Brasil. Os kilombos Imbangala tinham rituais específicos, com morte de crianças, serragem de dentes e canibalismo. Como eram nômades, não tinham uma ligação territorial nem as linhagens que davam a legitimidade do poder, diferentemente do que ocorreu nos mocambos do interior de Pernambuco, onde se formou um reino linhageiro`, disse Lara.
Os mocambos se organizavam segundo uma gramática política centro-africana, explicou a pesquisadora. Como nos sobados centro-africanos (os potentados locais da África), os chefes políticos dos mocambos do Nordeste mantinham relações de parentesco entre si e todos estavam subordinados a Ganazumba, conhecido como rei dos Palmares. `Esse sobado que se formou no interior de Pernambuco foi reconhecido pelas autoridades coloniais como um poder político independente, com o qual se podia negociar`, disse.
Mudança para Cucaú
A pesquisadora conta que a ideia de as autoridades coloniais fazerem acordos com fugitivos sempre existiu – e não apenas no Brasil. O de 1678, porém, foi o que mais progrediu. Boa parte dos habitantes dos mocambos de Palmares mudou-se para uma aldeia criada especialmente para recebê-los, Cucaú, e eles foram considerados livres.
A paz, no entanto, não durou mais do que dois anos. Uma parte dos mocambos, liderada por Zumbi, rejeitou o acordo e ficou em Palmares. Seguidores de Ganazumba, como seu irmão Ganazona, participaram de buscas para trazer os que haviam permanecido no mato. Ganazumba termina assassinado e Cucaú, destruída, provavelmente por tropas coloniais. As pessoas que moravam lá voltaram à condição de escravos.
`A história contada até hoje sobre Palmares é uma história militante e toda ela converge para o enaltecimento da figura de Zumbi como a grande liderança que jamais se curvou e resistiu à escravidão até ser morto em 1695; as pessoas reiteram e usaram a mesma documentação para dizer mais ou menos a mesma coisa`, ressaltou Lara. `Essa história passa muito rápido pelo acordo de paz. Tão rápido que os termos do acordo nunca foram publicados nas coletâneas de documentos feitas sobre Palmares.`
Interessada em discutir as formas de dominação nesse período e o modo como africanos e indígenas lidaram com o domínio colonial, Lara recupera de todas as formas o acordo. `A história de Palmares, da maneira como a estamos estudando, ajuda a entender como a dominação colonial foi enfrentada e modificada pela ação dos índios e dos africanos na África e no Brasil.`
Com o auxílio do Projeto Temático Fapesp, Lara e sua equipe montaram uma base de dados sobre Palmares, organizada de forma a ser disponibilizada para consulta pública online. Cerca de 2 mil documentos foram digitalizados e aos poucos estão sendo transcritos. `Espero que, dentro de dois anos, tudo esteja aberto para o público`, disse.
Diversos bolsistas também produziram trabalhos relacionados à produção da base de dados. Um deles foi a monografia de graduação `Guerras contra Palmares: um estudo das expedições realizadas entre 1654 e 1695`, de Laura Peraza Mendes, que ganhou prêmio de melhor monografia de graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp em 2011.
Mendes defenderá sua dissertação de mestrado, que contou com Bolsa Fapesp, em agosto de 2013. Lara agora trabalha para transformar em livro a tese `Palmares & Cucaú: o aprendizado da dominação`, com a qual se tornou professora titular.

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