Agência Fapesp - Terra Educação - 01/08/2013 - São Paulo, SP
Em 1678, o então rei dos Palmares firmou um acordo de paz com o
governador de Pernambuco, a autoridade máxima sobre um território que
englobava os atuais estados da Paraíba, Alagoas, Rio Grande do Norte,
além de Pernambucano.
A
negociação durou alguns meses e envolveu intérpretes, envio de
embaixadas, presentes e libertação de prisioneiros. De um lado,
Ganazumba (ou Gangazumba), tio de Zumbi, séculos depois apontado como
símbolo da resistência contra a escravidão; de outro, dom Pedro de
Almeida, governador prestes a voltar para Portugal.
Até
agora pouco estudado e comentado pela historiografia, o episódio vem
ganhando contornos mais definidos sob a luz de documentos originais, boa
parte deles inéditos. O material, manuscrito, inclui cartas, despachos
de conselheiros do regente português, crônicas e até rascunhos
encontrados em Portugal pela historiadora Silvia Hunold Lara, professora
da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), em pesquisa realizada
no âmbito do Projeto Temático `Trabalhadores no Brasil: identidades,
direitos e política (séculos XVII a XX)`.
A
documentação tem permitido que Lara e outros historiadores tracem uma
nova cronologia sobre Palmares. `Em geral, a historiografia periodizou a
história palmarina a partir das guerras feitas contra eles. Procuro me
concentrar na formação dos mocambos [os assentamentos de fugitivos] e
entender como eles se organizavam em termos políticos e militares`,
disse Lara.
`A
década de 1670 é importante porque marca o reconhecimento por parte das
autoridades portuguesas e coloniais desse sobado (estado africano) em
Palmares. Os termos do acordo negociado em 1678 constituem a maior
evidência disso`, disse a historiadora.
Em
seus estudos, Lara retoma teses de uma vertente da historiografia que
dá ênfase às raízes africanas de Palmares, na qual se incluem os
brasileiros Nina Rodrigues (1862-1906) e Edison Carneiro (1912-1972) e
os norte-americanos Raymond Kent (1929-2008), Stuart B. Schwartz e John
Thornton.
De
acordo com Lara, um documento-chave para entender Palmares é uma
crônica anônima, com data atribuída a 1678, escrita logo depois do
acordo de paz selado entre Ganazumba e o governo de Pernambuco, quando
d. Pedro de Almeida volta a Portugal e vai mostrar seus feitos às
autoridades portuguesas.
`É
uma crônica extensa, que faz uma história de Palmares, desde o seu
início até 1678. Dá nome aos mocambos, descreve as relações entre os
chefes militares e os chefes dos mocambos, conta as expedições feitas e
equipara a uma conquista militar a vitória [parcial] obtida em 1677 por
uma expedição que destrói os mocambos e está na origem do acordo de
paz`, disse.
O
grande ponto, segundo a professora titular do Departamento de História
da Unicamp, é que essa crônica sempre havia sido lida pelos estudiosos a
partir de uma publicação na Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro de 1859 – feita quase 200 anos após ser redigida.
`As
pessoas não viram o original, que estava perdido nos arquivos. Quando
você olha o original, pode ver que houve transcrições incorretas`, disse
Lara. Um bom exemplo é o dos nomes das lideranças palmarinas e dos
principais mocambos ali descritos – com diferenças em relação aos
consagrados pela historiografia.
`A
maior parte de quem lidou com Palmares trabalhou com uma documentação
impressa. E quem transcreveu e publicou fez uma seleção. Ao ir às fontes
e aos arquivos, localizei uma quantidade muito grande de fontes ao
redor desses documentos transcritos, muitas nunca publicadas`, disse.
Os
achados estavam no Arquivo Histórico Ultramarino e no Arquivo Nacional
da Torre do Tombo, em Lisboa, e na biblioteca pública da cidade de
Évora, interior de Portugal.
Saindo da trilha dos Imbangala
Lara também parte de um trabalho publicado em 2007 por Thornton e pela
historiadora Linda Heywood, da Boston University, nos Estados Unidos,
sobre a história das guerras na África Central para estudar quem eram os
africanos escravizados e trazidos para o Brasil que fugiram e acabaram
se organizando em agrupamentos em vários pontos de uma extensa região
nordestina ao norte do Rio São Francisco, caracterizada por matas de
palmeiras.
`Hoje
conseguimos saber com um pouco mais de precisão quem eram as pessoas
trazidas para cá: muito provavelmente eram falantes de kimbundu, língua
africana da região do então reino de Ndongo, que ocupava o que hoje é
uma região de Angola`, disse.
Dos
vários assentamentos de fugitivos – todos conhecidos nessa época como
palmares –, um deles em especial se consolidou durante o período da
ocupação holandesa (entre 1630 e 1654), formando uma rede de mocambos
que se tornou conhecida depois como Palmares. Nove mocambos chegaram a
abrigar no total cerca de 11 mil habitantes, de acordo com algumas
fontes.
`Todo
mundo diz quilombo dos palmares, mas a palavra `quilombo` é empregada
deslocadamente nesse contexto e é anacrônica para designar Palmares. A
palavra empregada naquele período para designar `assentamentos de
fugitivos` é mocambo`, afirmou Lara.
Segundo
a historiadora, `kilombo` é uma palavra africana que significa
`acampamento de guerra`, usada pelos grupos nômades guerreiros
Imbangala, da África Central. Historiadores como o norte-americano
Stuart Schwartz, da Yale University, consideraram que a formação dos
quilombos nas Américas estava relacionada a esses acampamentos
guerreiros – daí a origem do termo.
`Mas
acho que essa não é uma matriz da formação dos assentamentos dos
fugitivos no Brasil. Os kilombos Imbangala tinham rituais específicos,
com morte de crianças, serragem de dentes e canibalismo. Como eram
nômades, não tinham uma ligação territorial nem as linhagens que davam a
legitimidade do poder, diferentemente do que ocorreu nos mocambos do
interior de Pernambuco, onde se formou um reino linhageiro`, disse Lara.
Os
mocambos se organizavam segundo uma gramática política centro-africana,
explicou a pesquisadora. Como nos sobados centro-africanos (os
potentados locais da África), os chefes políticos dos mocambos do
Nordeste mantinham relações de parentesco entre si e todos estavam
subordinados a Ganazumba, conhecido como rei dos Palmares. `Esse sobado
que se formou no interior de Pernambuco foi reconhecido pelas
autoridades coloniais como um poder político independente, com o qual se
podia negociar`, disse.
Mudança para Cucaú
A pesquisadora conta que a ideia de as autoridades coloniais fazerem
acordos com fugitivos sempre existiu – e não apenas no Brasil. O de
1678, porém, foi o que mais progrediu. Boa parte dos habitantes dos
mocambos de Palmares mudou-se para uma aldeia criada especialmente para
recebê-los, Cucaú, e eles foram considerados livres.
A
paz, no entanto, não durou mais do que dois anos. Uma parte dos
mocambos, liderada por Zumbi, rejeitou o acordo e ficou em Palmares.
Seguidores de Ganazumba, como seu irmão Ganazona, participaram de buscas
para trazer os que haviam permanecido no mato. Ganazumba termina
assassinado e Cucaú, destruída, provavelmente por tropas coloniais. As
pessoas que moravam lá voltaram à condição de escravos.
`A
história contada até hoje sobre Palmares é uma história militante e
toda ela converge para o enaltecimento da figura de Zumbi como a grande
liderança que jamais se curvou e resistiu à escravidão até ser morto em
1695; as pessoas reiteram e usaram a mesma documentação para dizer mais
ou menos a mesma coisa`, ressaltou Lara. `Essa história passa muito
rápido pelo acordo de paz. Tão rápido que os termos do acordo nunca
foram publicados nas coletâneas de documentos feitas sobre Palmares.`
Interessada
em discutir as formas de dominação nesse período e o modo como
africanos e indígenas lidaram com o domínio colonial, Lara recupera de
todas as formas o acordo. `A história de Palmares, da maneira como a
estamos estudando, ajuda a entender como a dominação colonial foi
enfrentada e modificada pela ação dos índios e dos africanos na África e
no Brasil.`
Com
o auxílio do Projeto Temático Fapesp, Lara e sua equipe montaram uma
base de dados sobre Palmares, organizada de forma a ser disponibilizada
para consulta pública online. Cerca de 2 mil documentos foram
digitalizados e aos poucos estão sendo transcritos. `Espero que, dentro
de dois anos, tudo esteja aberto para o público`, disse.
Diversos
bolsistas também produziram trabalhos relacionados à produção da base
de dados. Um deles foi a monografia de graduação `Guerras contra
Palmares: um estudo das expedições realizadas entre 1654 e 1695`, de
Laura Peraza Mendes, que ganhou prêmio de melhor monografia de graduação
do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp em 2011.
Mendes
defenderá sua dissertação de mestrado, que contou com Bolsa Fapesp, em
agosto de 2013. Lara agora trabalha para transformar em livro a tese
`Palmares & Cucaú: o aprendizado da dominação`, com a qual se tornou
professora titular.
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