Hélio Schwartsman - Folha de São Paulo - 13/06/2013 - São Paulo, SP
Um
pouco a título de provocação, um pouco para tentar mostrar que ganhos
incrementais podem fazer uma grande diferença, escrevi para a edição
impressa da Folha de sábado a coluna `Os médicos e Darwin` em que
sustentei que mesmo um profissional de saúde mal equipado e mal formado
--os médicos cubanos que o governo pretende trazer para os rincões do
Brasil-- é capaz de salvar vidas. Isso é especialmente verdade em nichos
ecológicos como a Amazônia, onde doenças fáceis de identificar e de
tratar, como diarreias e infecções agudas, ainda são uma importante
causa de óbito.
Usei
o bom e velho Darwin para lembrar os médicos de que, mesmo sem ser
plenamente funcional, uma protoasa já ajuda seu dono a planar e pode
fazer com que ele não se machuque tanto numa eventual queda. Esquilos
voadores são a prova viva de que isso funciona.
Como
um assunto puxa o outro, comprei e li `Why We Get Sick: The New Science
of Darwinian Medicine` (por que nós adoecemos: a nova ciência da
medicina darwiniana), do médico Randolph Nesse e do biólogo George
Williams. Trata-se de um clássico na matéria, publicado no já longínquo
ano de 1996.
De
lá para cá, saíram muitas novas obras sobre esse tema. Eu próprio já
comentei algumas delas nesse espaço, como `Supernormal Stimuli`
(estímulos supernormais), de Deirdre Barrett, e `The Wild Life of Our
Bodies` (a vida selvagem de nossos corpos), de Rob Dunn.
Apesar
de trazer algumas informações desatualizadas, `Why We Get Sick`
permanece uma leitura importante. É uma obra suficientemente geral para
abordar as diferentes vertentes da medicina darwiniana e funciona também
como um manifesto dessa ciência emergente. É até um pouco frustrante
constatar que ela avançou menos do que seria desejável nestas últimas
duas décadas.
Com
efeito, análises darwinianas penetraram todas as esferas do mundo
acadêmico, incluindo o bastião das humanidades. Hoje encontramos
comentários evolucionistas até sobre arte, literatura e filosofia. Os
resultados, é claro, são desiguais. Na medicina, entretanto, que é por
definição uma ciência biológica, a invasão foi surpreendentemente menor.
A maioria das faculdades ainda não ministra uma disciplina específica.
Uma possível explicação é que médicos costumam interessar-se mais pelo
como tratar do que pelas causas profundas das moléstias. Não dá para
afirmar que isso seja um mal, mas pode haver situações em que deixar de
compreender a gênese do problema nos faz abordá-lo de forma errada. É um
pouco isso que Nesse e Williams procuram mostrar.
Um
exemplo eloquente é o da miopia. Ela é claramente hereditária --algo em
torno de 80%-- e extremamente prevalente. Estima-se que de 800 mil a
2,3 bilhões dos 7 bilhões de terrestres (de 11,5% a 33%) tenham algum
problema refrativo, entre os quais a miopia é o predominante.
Considerando
que míopes sem óculos somos praticamente inválidos, como é possível que
um gene desses não tenha sido eliminado pela seleção natural? Como é
que feras, precipícios e a total falta de pontaria não acabaram com os
míopes na Idade da Pedra?
É
aqui que as coisas começam a ficar complicadas e interessantes. A
miopia tem um importante componente genético, mas também é fortemente
determinada pelo ambiente. Ela provavelmente inexistia na Idade da
Pedra, assim como é extremamente rara entre os poucos
caçadores-coletores que ainda restam no planeta. Sua incidência é muito
maior nas sociedades industrializadas do que nas tradicionais. Por que?
A
hipótese de Nesse e Williams era a de que havia algo no processo de
alfabetização que facilitava o surgimento da miopia naqueles que tinham
genes que os predispunham para isso. `[Estudos mais recentes]`:http://www. aaojournal.org/article/S0161- 642000363-6/abstract
sugerem que o gatilho não está na alfabetização, mas na quantidade de
luz solar a que a criança é exposta. Quanto mais tempo ela passa em
ambientes internos, maiores as chances de desenvolver o problema.
Isso
já basta para mostrar que não dá muito certo pensar a miopia como uma
doença clássica, isto é, compreendida como um ou mais genes defeituosos
que codificam uma característica maladaptativa. Faz mais sentido
interpretá-la como uma variação genética que provavelmente traz alguma
vantagem adaptativa ainda desconhecida, mas que, interagindo com as
mudanças ambientais que experimentamos nos últimos séculos, se tornou
desvantajosa. Como desenvolvemos também óculos, lentes de contato e
cirurgias refrativas, ela não chega a ser fatal para seus portadores. De
toda maneira, essa perspectiva darwinina não apenas nos permite
entender melhor o fenômeno como até cogitar de estratégias preventivas,
baseadas na exposição à luz solar.
Coisas
semelhantes valem para muitas outras doenças e condições, que, à luz do
darwinismo, deixam de ser mistérios médicos para tornar-se narrativas
biológicas. Moléstias cardíacas e o mal de Alzheimer, por exemplo,
também estão associados a certos genótipos -o ApoE4 parece facilitar o
surgimento de ambos--, que devem trazer vantagens para seus portadores.
Como o homem do Pleistoceno quase nunca tinha problemas do aparelho
circulatório (a comida era escassa, magra, e o regime de exercícios,
intenso) e raramente chegava à idade de apresentar sintomas de
Alzheimer, esses genes foram mantidos. E continuam a sê-lo, já que as
dificuldades tendem a aparecer apenas depois da fase reprodutiva,
período em que a seleção já não atua.
Esse
tipo de abordagem permite `insights` valiosos para pensar quase tudo,
de cânceres a alergias e doenças mentais, passando pelo enjoo das
grávidas, engasgos a corrida contra os micróbios (que estamos condenados
a perder), além da senescência. Sugere, também, que pesquisemos melhor
condutas que hoje aplicamos acriticamente. A febre, além de ser
desagradável, pode matar e causar sérios problemas de saúde, mas não
podemos esquecer que ela é um eficaz mecanismo de defesa contra
infecções, que até répteis tentam emular quando estão doentes. Sem
jamais deixar de dar antitérmicos a quem precisa, valeria a pena
investigar o que perdemos ao fazê-lo.
De
um modo geral, a medicina evolutiva ensina que muitas das doenças são
provocadas por genes que jamais serão eliminados do `pool` genético da
humanidade porque conferem benefícios numa fase anterior. Mudanças
ambientais podem torná-los mais ou menos `doentios`. Há uma outra
família de problemas que têm origem nas soluções de compromisso que a
natureza produziu ao longo de nossa evolução. As dores nas costas que
acometem humanos, por exemplo, são consequência direta de termos
decidido andar sobre duas pernas.
Seria
um tremendo erro se os profissionais de saúde abandonassem o caráter
instrumental da medicina e passassem a dar mais atenção a teorias
totalizantes do que a terapias e ao controle clínico das moléstias, mas
certamente não faria mal se procurassem também pensar as doenças e
disfunções com que se deparam sob um prisma darwinista. Podem descobrir
coisas muito interessantes, que eventualmente abrirão novas
possibilidades terapêuticas. Afinal, como dizem Nesse e Williams
parafraseando o grande geneticista Thodosius Dobzhansky, `nada em
medicina faz sentido, exceto à luz da evolução`.
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